Você pode achar que a travesti ensanguentada dependurada numa cruz foi um pouco demais.
Ou talvez muito demais.
Pode achar que foi uma tolice, já que, no caso da religião, toda crítica deveria considerar desde o início uma equação pouco compreensível aos céticos, entre razão e fé, entre o que se pode argumentar e o que se vê mesmo não se vendo.
Pode achar que por mais que os transexuais sintam-se tão marginalizados e desamparados quanto os (muitos) criminosos pregados a cruzes na época de Jesus, o debate de ideias transforma-se em bate-boca simbólico quando o símbolo mais forte de uma religião é caricaturado.
Pode achar que a provocação é anticonstitucional, porque vilipendiaria sentimentos religiosos.
Pode achar que é uma péssima estratégia para o movimento LGBT, porque mostra que a tolerância e a multiplicidade de pensamento defendida por ele não é tão tolerante e múltipla assim.
Mas você não pode adotar o discurso de “se eles querem respeito, então que nos respeitem” que boa parte das lideranças e fiéis evangélicos adotou desde então.
Sabe por que?
Porque o cristianismo é baseado na graça. É uma das únicas doutrinas comuns entre católicos, protestantes, evangélicos, pentecostais, anglicanos, episcopais etc. Na verdade, o escritor C.S. Lewis dizia que a graça é o grande elemento que distingue o cristianismo de todas as outras religiões. Graça é, por definição, imerecimento. É um movimento de amor em direção aos que não merecem ser amados. Os cristãos acreditam que foi isso que Deus fez pelos seres humanos, e os apóstolos diziam que é isso o que devemos fazer uns pelos outros.
Ou seja: os discípulos de Jesus respeitam mesmo (ou talvez especialmente) quando não são respeitados.
Foi isso que motivou o grande racha entre o cristianismo e o judaísmo, ainda no primeiro século, quando os seguidores de Jesus se negaram a reagir com violência contra os romanos que, comandados por Tito, devassaram Jerusalém, colocaram abaixo o maior dos símbolos da sua fé (o templo) e ainda cunharam um das frases mais cruéis já proferidas por um comandante vencedor: “não há mérito em vencer um povo abandonado por seu próprio Deus.”
Os cristãos do primeiro século se lembravam de seu mestre abolindo o “olho por olho e dente por dente”, recomendando não resistir ao perverso, oferecer a outra faça sempre que for ferido, oferecendo a capa ao que lhe exigir em juízo apenas a túnica, amar o inimigo porque, dizia Jesus, não há mérito nenhum em amar apenas quem nos ama ou saudar apenas os nossos irmãos. Isso num contexto em que, muito mais do que ser desrespeitado em seus símbolos na internet, amar ao inimigo significava posicionar-se diante de um soldado que podia queimar a sua casa e estuprar sua filha. Foi sob o sangue dessa gente que o cristianismo foi urdido.
Martin Luther King lembrou disso ao se opor à violência pregada, por exemplo, por Malcolm X: “O amor é a única arma capaz de transformar inimigos em amigos”, dizia ele. Os dois líderes discordavam do regime segregacionista. Mas um era discípulo do homem que pregava a graça e a paz e o outro ainda acreditava no "se querem respeito, que nos respeitem". King acabou morto, como muitos que morrem em uma missão.
Mas morreu pacificador, como mandou seu mestre, num mundo em que as nossas entranhas nos mandam responder o mal com mal, o desrespeito com desrespeito, a violência com violência, o escárnio com escárnio. Que alívio lembrar que há santos para quebrar o ciclo da maldade que todo dia se levanta sobre nós.
Homossexual introduz um crucifixo no ânus. |
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